segunda-feira, 3 de maio de 2010

Poema de Suriel Moisés

Os versos foram escritos quando começou as pesquisas na área da oralidade e são um reflexo do encantamento e do ímpeto que sentiu em desvendar este mundo maravilhoso da Poesia Popular.  
 
 
 
Jornada Cultural
 
Vou cruzar o Brasil de ponta a ponta
Desvendando os mistérios culturais
Dentre as roças sertões e matagais
Vendo a arte que vívida desponta
Pensamento firmado e mala pronta
Vou tirar meu sapato e pôr chinela
E na longa jornada ver quão bela
É a história de cada lugarejo
Descobrindo o talento sertanejo
Onde a luz da cultura se revela
 
Vou pintar na memória uma aquarela
Com as cores de cada tradição
Traduzir o Brasil com perfeição
Nos detalhes de cada cidadela
Vou a pé, de canoa e barco a vela,
Percorrer cada metro brasileiro
Ver um vate, caboclo, cancioneiro,
Transformar uma opaca pedra bruta
Em diamantes de verso em voz matuta
Como fosse o mais hábil joalheiro
 
Quero ouvir os segredos do terreiro
Na seara de Obaluaiê
Entregar-me prum coco de Zambê
Numa noite estrelada de janeiro
Com licença de algum catimbozeiro
Ver o culto citado em "Iracema"
E no aroma de arruda e alfazema
Preparar-me pra entrar na sintonia
E entender neste rito a encantaria
Dos augustos mistérios da Jurema
 
Na procura do Santo diadema
Grande lume sublime Popular
Quero ouvir o mais rústico entoar
Do lirismo caboclo em um poema
Ver o bom cantador que, sem problema,
Improvisa em Martelo Alagoano
Que é complexo, mas ele, sem engano,
Cria versos com toda precisão
Metrifica lirismo e coesão
Humilhando qualquer parnasiano
 
Vou aos poucos deixar de ser profano
Conhecendo o Sertão dos menestréis
Que sem pompas, canudos nem lauréis
Dão exemplos de honra ao ser humano
O roceiro é artista soberano
Não existe doutor que faça igual
Um poeta, matuto, genial,
Como foi nosso grande Patativa
Uma estrela de luz forte e altiva
Clareando o universo cultural
 
Quero ver no estilo Armorial
Uma orquestra na beira de uma praia
Com rabeca, com pife, com alfaia
Urucungo, maraca e berimbau.
Quero ver nos festejos de Natal
Um cortejo de vozes tão sofridas
Entoando canções agradecidas
Demonstrando firmeza e confiança
Despertando na gente a esperança
De encontrar alegria em nossas vidas
 
Quero ver boi de reis nas avenidas
Relembrando o nascido Deus menino
E a brancura da pomba do divino
Contrastando com fitas coloridas
Quero ouvir o compasso das batidas
Sincopadas dum coco e dum baião
E no ardor causticante do verão
Sob a luz das estrelas caminhando
Ver um Boi magistral ressuscitando
No reisado de cada coração
 
Quero ver a folia do azulão,
Do nhambu, do xexéu, numa toada
Floreando o prelúdio d'alvorada
Quando o Sol vem rompendo a escuridão
Sob a luz matutina do Sertão
Ver a mata florindo bela e pura
Que, com toda abundancia, configura
Um cenário pra grande sinfonia
Dos canários cantando de alegria
Em louvor aos caprichos da Natura
 
Quero ver a mais mítica figura
Das histórias do velho pai Vicente
O saci viciado em aguardente
E a mula assombrando a noite escura
Boitatá a terrível criatura
Curupira cuidando o florestal
E um índio de encanto sem igual
Que tocava uma flauta de bambu
Num mistério virar uirapuru
Passarinho de canto divinal
 
Nesta grande jornada cultural
Vou findar esta sede que maltrata
Na mais limpa nascente que hidrata
A raiz do folclore nacional
Vou lavar o nojento lamaçal
Tão bizarro da "arte" de hoje em dia
Que desponta na rádio ou livraria
No pagode, no funk ou no congresso
De doutores que estudam prosa e verso,
Com a mesma pseudo-poesia
 
Vou pedir toda força e valentia
Necessárias na intrépida batalha
Pra transpor com bravura a vil muralha
Do modismo e da vã idolatria
Vou mostrar o valor da poesia
Que a própria natura nos retrata
Que não veio de um meio aristocrata
Nem de um grupo, de doutos, influente
Mas brotou e cresceu como a semente
De um ipê que ornamenta a verde mata
 
Já me usei de linguagem abstrata
Inspirado no estilo modernista
Mas é quando eu escuto um Repentista
Que a minha poética desata
Repentista parece uma cascata
Conduzindo lirismo em correnteza
No seu metro descreve com riqueza
O mais belo cantar dos rouxinóis
Construindo sublimes arrebóis
Em seu canto louvando a natureza
 
Quero ver estes Mestres da destreza
Portadores da herança milenar
Cujo tempo cuidou de preservar
Desde as eras feudais da realeza
Que através das esquadras, portuguesa,
Holandesa, francesa e espanhola
Conduziram no mar a grande escola
Pra formar novos bardos com virtude
E trocar o nostálgico alaúde
Pelos fortes ponteios da viola
 
Como gira no espaço a grande bola
Nos etéreos confins da imensidão
Vou rodar o país nesta função
Pra matar a vontade que me assola
Ver os grandes concursos de viola
Transbordando em talento e maestria
E no afã da instigante cantoria
Contemplando o maior dos espetáculos
Alcançar a planície nos pináculos
Consagrados da Santa Poesia
 
Suriel

--
J3

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